Haitianos na República Dominicana vivem sob regime violento e desumano

Sterling Carrasco, sacerdote católico nacional da Igreja Católica Apostólica Brasileira, denuncia: “Nenhum agente da lei tem o direito de maltratar um ser humano”

 

 

Por Bessa Luna, São Paulo, SP,

A imigração na República Dominicana é um tema secular. O país ocupa uma posição geográfica privilegiada, em uma ilha de belezas naturais incomparáveis no Caribe, onde a colonização da América se iniciou. Sempre foi um ponto estratégico para a coroa espanhola e, hoje em dia, é um dos caminhos nos quais milhares de pessoas buscam entrar na Flórida, sul dos EUA.

Para explicar o que se passa atualmente no território dominicano, a Revista Centelha entrevistou com exclusividade o padre e ativista Sterling Carrasco, membro da ICAB, a Igreja Católica Apostólica Brasileira. É ele quem relata, por meio da nota abaixo a recente violência das autoridades locais contra a população estrangeira que entra no seu país.

 

Homem de pedra

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Rev. P. Sterling Carrasco, sacerdote católico nacional da Igreja Católica Apostólica Brasileira.

Crédito: arquivo pessoal.

 

“Perante a atual situação migratória na República Dominicana, manifestamos a nossa profunda preocupação com os atos de abuso físico que foram relatados contra cidadãos estrangeiros, independentemente do seu estatuto migratório.

Reiteramos que todas as pessoas merecem respeito, dignidade e garantia dos seus direitos fundamentais.

A necessidade de regulamentação migratória não pode nem deve tornar-se uma desculpa para violência ou desrespeito.

A partir do nosso espaço, apelamos urgentemente às autoridades competentes para que sejam implementadas outras medidas mais humanas e eficazes, que favoreçam o tratamento digno e salvaguardem a integridade física e moral de cada pessoa, independentemente da sua nacionalidade ou situação migratória.

Nenhum agente da lei tem o direito de maltratar um ser humano.

Exortamos a que os mais vulneráveis sejam protegidos e aja com justiça, compaixão e sensatez.”

 

O Haiti foi o primeiro país da América a declarar independência frente aos invasores europeus depois de um longo processo de sofrimento e exploração. Após ser largamente utilizado pela França na produção de açúcar refinado, um produto lícito que gerou dependências químicas e alimentares irreparáveis até os dias de hoje, uma revolução aconteceu. O tráfico de negros escravizados oriundos da África foi tão intenso que, entre 1791 e 1804 a elite de pele branca não pôde conter as revoltas da população. Hoje, persiste o predomínio político de uma elite aliada aos interesses dos EUA, ainda que majoritariamente negra.

Padre Carrasco explica, de forma resumida, o contexto atual. A pobreza que assola o Haiti, em grande parte causada por desastroso terremoto dez anos atrás, é gravíssima. Ele nos conta que a crise literalmente invade a República Dominicana, cujo governo responde com agressividade para controlar os imigrantes:

 

Revista Centelha: Por que o governo precisa regular a migração na República Dominicana? De onde vêm essas pessoas e por que vivem na República Dominicana agora?

 

Pe. Sterling Carrasco: A maioria desses estrangeiros vem do Haiti. Muitos chegam fugindo de situações extremamente difíceis: violência, fome, completa falta de oportunidades. O país deles está em crise profunda, com gangues armadas, um Estado que praticamente entrou em colapso.

Então, eles cruzam a fronteira em busca de uma vida melhor, mesmo que isso signifique vender água em semáforos ou trabalhar na construção civil. Há também outros estrangeiros, como venezuelanos, colombianos e até africanos, que usam a República Dominicana como ponto de passagem.

Mas o foco principal está nos haitianos. Muitos já construíram suas vidas aqui, têm filhos dominicanos.

A situação migratória na República Dominicana é uma questão delicada, mas muito real. Compartilhamos a ilha com o Haiti, e a diferença entre os dois países é abismal, tanto econômica quanto estruturalmente.

É por isso que, por muitos anos, houve um fluxo constante de cidadãos haitianos cruzando a fronteira para este lado. Agora, por que o governo precisa regular isso? Porque estamos falando de soberania.

Não se trata de ser mau ou xenófobo, mas sim de ter controle sobre quem entra, quem sai e como a população é gerida em nosso território. Há questões de saúde, emprego, educação, segurança e o Estado tem a responsabilidade.

 

Pessoas em uma montanha

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Quando um terremoto tirou a vida de mais de 300 mil pessoas no Haiti, a corrupção e a crise política atrasaram ainda mais o desenvolvimento da população. Na foto, cidadãos haitianos reconstroem uma escola no bairro Feuilles, em Porto Príncipe. Crédito: Alice Smeets, Laif, Redux.

 

O Haiti teve grande influência nas subsequentes revoluções latino-americanas. Simón Bolívar esteve no Haiti após ser derrotado pelas forças espanholas na Venezuela e, em busca de apoio para a luta pela independência, pediu ajuda ao então presidente Alexandre Pétion. O líder da jovem nação haitiana, forneceu a Bolívar apoio militar, material e moral, em troca do compromisso de Bolívar de abolir a escravidão nas regiões que libertasse:

 

Revista Centelha: Qual é a relação entre o que está acontecendo hoje e a colonização? Quais são os resquícios da escravidão que tornam essas pessoas vulneráveis ​​hoje?

Pe. Sterling Carrasco: Essa pergunta é profunda. A colonização deixou feridas que ainda sangram. Quando os colonizadores chegaram, trouxeram escravos africanos e dividiram a ilha em dois mundos: francês e espanhol.

A partir daquele momento, as desigualdades raciais, culturais e econômicas começaram. Os haitianos, em sua maioria descendentes de africanos escravizados, carregaram um fardo histórico brutal: pobreza, discriminação, exclusão. E isso não mudou muito.

Ainda hoje, ter pele escura, sotaque diferente ou simplesmente ser haitiano é motivo para ser tratado com desprezo, tanto pela sociedade quanto pelas autoridades. Na República Dominicana, ainda carregamos preconceitos coloniais: racismo, classismo, medo do "outro".

Isso significa que as pessoas mais vulneráveis ​​ como muitos migrantes haitianos acabam sendo duplamente vitimizadas: devido à sua situação econômica e devido a esse legado histórico que lutamos para reconhecer e curar.