segunda-feira, 14 de agosto de 2023

Perfil: Cícera (MMJSL-SP)


A luta é todo dia

Na madrugada do último final de semana de julho, Maria Cicera Mineiro da Silva, ou apenas Cicera do Jardim São Luiz, não conseguia dormir. Em sua mente, se preocupava com uma pendência para o evento que ocorreria dali poucas horas

Naquele domingo ocorreu uma das reuniões do Movimento de Moradia do Jardim São Luiz, na Zona Sul da cidade de São Paulo. Entre as atividades do dia, uma oficina de manufatura de hortas direcionada às crianças. A única demanda para Cicera era providenciar garrafas PET para que os pequenos plantassem verduras e ervas para temperos. Entretanto, ela acabou se esquecendo da promessa feita ao oficineiro e perdeu o sono. 

A solução estava ao alcance das mãos. A líder comunitária pegou o celular e acionou um dos grupos de WhatsApp de moradores e pediu pela sucata para a oficina. Resultado: uma montanha de garrafas em quantidade muito acima do que o necessário, o que rendeu um grande saco de sobras para serem utilizadas em outras edições da oficina.

Visão panorâmica

O obstáculo narrado é pequeno perto de tudo que Cicera teve de superar em sua jornada. Contudo, essa pequena história ilustra a visão ampla da líder comunitária. Em seu raciocínio, as tais garrafas PET eram essenciais para o funcionamento da reunião de associados. Cicera sabe que ensinar as crianças sobre tema tão relevante é muito importante. 

Por outro lado, ela também está consciente que, quando os pequenos estão engajados em atividades lúdico-educativas, eles não ficam correndo no meio da quadra do centro comunitário. Aí, seus pais e os demais associados não se distraem com a comoção infantil e conseguem prestar atenção ao tema da palestra de uma hora que assistirão.

Nesses encontros, que reúnem mais de 450 pessoas, os adultos assistem à fala de um especialista sobre temas variados: economia, ecologia, psicologia, cidadania, entre outros. Tais eventos são a frente de extensão do movimento por moradia liderado por Cicera. Ela entende que sua luta não termina quando seus parceiros conquistam a casa própria, concentrando parte de sua energia para outra bandeira: a conscientização e formação política dos moradores. Assim, consegue ocupar espaços que anteriormente eram restritos a outras classes sociais, como órgãos decisórios de participação popular.

De Alagoas para São Paulo

Muito antes dos encontros comunitários que demandam garrafas PET, o começo da jornada de Cicera que a levou ao posto de liderança comunitária pode ser estipulado em 1974. Foi quando ela chegou a São Paulo, vinda de Maceió (AL), sua cidade-natal. Como tantos outros nordestinos, Cicera fez a viagem ao sul em busca de melhores oportunidades. 

Além dos desafios inerentes a essa escolha, a futura líder tinha outros empecilhos, principalmente o patriarcado. Sozinha na metrópole, Cicera não conseguia fechar um contrato de aluguel, pois os locadores exigiam que ela tivesse uma família constituída, daquelas "lideradas" por um marido.

Formação da guerreira

Foi nesse contexto que ela soube, durante um trajeto de ônibus, da ocupação de um terreno perto da represa de Guarapiranga O ano era 1980 e essa iniciativa foi parte de uma ação integrada de movimentos por moradia, que organizou ocupações simultâneas nos quatro cantos da capital.

Lá em Guarapiranga, eram cerca de 700 famílias que conseguiram ficar por cinco meses no terreno. Isso até uma ação de restituição de posse, com os casos típicos de truculência e violência policial contra os pobres. A repercussão midiática desse confronto colocou holofotes no movimento, que conseguiu um acordo. Parte aceitou receber três meses de aluguel para se realocar, enquanto outros (Cicera inclusa) foram se abrigar em uma escola por mais quatro meses.

Cicera e seus parceiros só saíram de lá depois de assinar contrato que garantia moradia para eles pela Cohab. Foi assim que 350 famílias foram alocadas no Jardim São Luiz, entre eles Cicera, na casa onde mora até hoje. O restante daqueles que se abrigam na escola foram para a Zona Leste.

A sombra do machismo persiste

No acordo após a ação orquestrada, cada contemplado teria um terreno de 75 m² e material de construção suficiente para levantar um cômodo de 5m x 4m. O problema era que tal oferta seria apenas para famílias constituídas. Assim, Cicera e mais uma dúzia de companheiras se viram novamente na mira do patriarcado.

Dentro do próprio movimento elas encontravam oposição e negligência de informações – mas não era isso que pararia a alagoana. Cicera e suas parceiras descobriram quando ocorreria a reunião com o prefeito Reinaldo de Barros e invadiram o evento. Seis delas conseguiram chegar até a sala onde estavam os homens que negociaram o acordo, as autoridades municipais e membros da imprensa.

Foi com essa ação extremada que Cicera conseguiu ser ouvida, tanto pelo poder público quanto pela imprensa. O saldo dessa iniciativa foi o privilégio de ser a primeira a assinar contrato, para desespero da macharada. Ela fez questão de participar do começo desse processo para acompanhar tudo de perto e garantir que outras pessoas desfrutassem dessa vitória.

Luta por moradia e cidadania

Depois que conquistou seu teto, Cicera poderia assentar, mas seu espírito inquieto e perfil de liderança não permitem. Ela venceu seguidas eleições para ser líder do movimento de sua comunidade, novamente para desgosto da homarada. Felizmente a democracia é mais robusta do que pití de macho.

Nesse posto, perpetua e expande a luta há décadas. Além de gerir o Movimento de Moradia do Jardim São Luiz, Cicera batalha por empreendimentos em outros locais. Suas ações já ultrapassaram os limites municipais, resultando em morada para mais de 1000 famílias

Sua visão ampla não a deixa sossegar, consciente de que não é só teto que constitui um cidadão. A luta também é por infraestrutura: creche, asfalto e outras melhorias nos arredores.

Comunidade e comunhão

A complexidade das batalhas também é explicitada nas reuniões no centro comunitário. Enquanto Cicera buscava as garrafas para a horta, os moradores conversavam empolgados nos grupos de WhatsApp para coordenar o cardápio do café da manhã coletivo. Enquanto um oferece um bolo, outra se propõe a levar uma torta e assim todos asseguram o estômago cheio de quitutes feitos com muito amor.

Essa comoção é a prova de que Cicera e seu movimento estão na rota correta. Afinal, as reuniões mensais são mais do que oportunidade de aprendizado, são momentos de comunhão. São nesses eventos que quem já foi contemplado com moradia entra em contato com quem ainda está na espera, costumeiramente demorada. Nesses encontros, além do café da manhã caprichado, os presentes ganham uma dose de ânimo para persistir na luta, pois ela vale a pena. E enquanto lideranças como Cicera se manifestam, a força é multiplicada.


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